"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado!" Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador. In Memoriam. |
Revendo antiga papelada, surpreendi-me com uma matéria publicada no Jornal do Brasil, em 2003, quando eu chefiava o Campo de Provas da Marambaia (CPrM), no Rio de Janeiro, e as queridas filhas Alessandra, Laura e Cecília não tinham sequer completado o primeiro aninho de vida.
Resolvi incluir o texto, na íntegra, neste blog, à guisa de recordação de um tempo de expectativas otimistas e inequívocas realizações profissionais. Se infração legal existe na divulgação não autorizada, ela está ancorada em boas intenções, em boa causa e, portanto, é uma infração boa.
Além da motivação resultante de a restinga da Marambaia, objeto do artigo, ser o habitat em que as queridas filhas passaram os 6 primeiros anos de suas vidas, o texto abriga declarações de oficiais que, àquela época, serviam comigo na primeira organização militar que comandei após a promoção a oficial-general.
Assim, a matéria inclui declarações do chefe da Comunicação Social, coronel Cardoso; do tenente Francisco, meu auxiliar pessoal que, há 27 anos, como soldado, servira comigo, quando eu era primeiro tenente, na Companhia de Material Bélico Paraquedista; e da tenente dentista Daniela, que fora assaltada por dois marginais na estrada Burle Marx, via de acesso à restinga da Marambaia, e enfrentou com bravura momentos tormentosos. Cita ainda a tenente Eiras e a tenente Patrícia, esta médica pediatra que acompanhava Alessandra, Cecília e Laura, com desvelo e qualificação.
Que o relato de aspectos positivos, belos e engrandecedores formulado pelo jornalista Bruno Agostini — seria parente da Renata Agostini, que em 2018 fez extensa entrevista comigo, divulgada pelo Estadão? — sirvam de estímulo para que, neste primeiro dia de 2023, abriguemos nos corações e mentes as ideias de que mesmo uma tragédia política como a que começa hoje, com a investidura na Presidência da República de um ex-honesto, ex-corrupto, ex-condenado e ex-presidiário, não caracteriza o fim.
Sempre há a possibilidade de um novo começo!
Sempre há uma causa justa a ser defendida!
Sempre há sendas escuras onde se pode espalhar luzes!
Sempre há desafios a demandar coragem!
Sempre há valores a serem mantidos com vontade e fé!
Sempre há uma Marambaia a nos impelir para a vanguarda objetivando a construção de um mundo melhor!
JORNAL DO BRASIL – Revista de Domingo – 23 Nov 03
PELOTÃO NA GUARDA DA ECOLOGIA
O convívio pacífico de exercícios militares e natureza na Restinga da Marambaia
Bruno Agostini
Diariamente, rajadas de metralhadora, tiros de morteiro e canhões, lançamentos de foguetes e explosões de bombas compõem a rotina do Campo de Provas da Marambaia (CPrM), num paraíso ecológico praticamente intocado na Zona Oeste, a apenas 60 Km do Centro do Rio. Mas a área de 50 quilômetros quadrados, repleta de espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, não cumpre apenas funções militares. Um estrondo em forma de bromélias, orquídeas, sabiás-da-praia, quero-queros e até tartarugas-marinhas é ouvido mesmo a quilômetros dali, na Barra da Tijuca, por exemplo, onde florescem exemplares cuja germinação se deu a partir de sementes retiradas da restinga preservada.
— Claro que os testes de armamento causam impacto ambiental. Mas ele é mínimo e a natureza se recupera em curtíssimo espaço de tempo – diz o diretor do campo de provas, general Ribeiro Souto, com a chancela dos biólogos que atuam no local.
Se há 59 anos o lugar serve para experimentos de material bélico, há cerca de dez começaram pesquisas que asseguram a sobrevida de diversas espécies. Com a descaracterização do litoral carioca, restaram pouquíssimas áreas de restinga. A praia de 40 quilômetros de extensão monopoliza o imaginário quando se fala em Marambaia. Mas não são apenas as plantas pequenas e emaranhadas, típicas de restinga - podadas pela ação dos ventos que sopram constantemente -, que compõem a flora da reserva natural:
— Quando se fala em Marambaia ninguém imagina florestas com árvores de até 28 metros de altura, formando bosques espetaculares, ou pensa nas 42 espécies de orquídeas que existem lá e só vivem em ambientes especiais – diz o pesquisador Luis Fernando Menezes.
Não fosse o resguardo forçado pelas atividades das Armas, muitas espécies talvez não existissem mais. Uma das mais raras, a Eugenia copacabanensis (o nome indica que era achada em Copacabana quando foi registrada), é um desses exemplares. Assim como ela, mais de uma centena de variedades encontradas na restinga são reproduzidas no Bosque da Barra por funcionários da prefeitura.
— As mais expressivas populações de diversas espécies de restinga estão na Marambaia, certamente. A Fundação Parques e Jardins não tem coletado sementes em outros lugares. Conseguimos reintroduzir várias que eram nativas da Barra com mudas que se desenvolveram a partir de sementes coletadas na Marambaia – comenta Luiz Roberto Zamith, biólogo com mestrado em ecologia, há cerca de dez anos trabalhando na fundação.
Desde 1995 Zamith está à frente do projeto Flora do Litoral, da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que já recompôs boa parte das áreas degradadas das Planícies de Jacarepaguá, aí incluídas as praias da Zona Oeste. Ele ainda utiliza o lugar para desenvolver estudos acadêmicos - há mais três teses em curso sendo produzidas no CPrM, além de uma dezena de pesquisadores atuando ali. A tese de doutorado de Zamith, também em ecologia, na UFRJ, é sobre Fatores que influenciam a sobrevivência e o crescimento de mudas de espécies nativas na restauração de restingas degradadas.
— É a perda de habitats a principal causa de extinção na atualidade. Dentro de uma metrópole, é uma dádiva contarmos com a restinga. O Exército inibe a caça e ação predatória de ladrões de plantas. Há uma imensa diversidade de fisionomias em um espaço relativamente pequeno. Sem contar que, com a especulação imobiliária, as áreas com certeza já teriam sido ocupadas. Como lá – afirma Luis Fernando Menezes, olhando para as encostas da Barra de Guaratiba, defronte, apinhadas de casas, mansões e casebres.
Freqüentemente, Zanith e Luis Fernando são requisitados pelos militares para dar palestras aos alunos das diversas escolas que fazem visitas guiadas ao CPrM.
— Temos a intenção de nos inteirar com a comunidade – conta o coronel Roberto Cardoso, relações-públicas da unidade.
Mas, para isso, nem seria necessária a presença dos biólogos. Coronel Cardoso é um profundo conhecedor da fauna e flora da Marambaia e é capaz de discorrer sobre os hábitos do sabiá-da-praia tão bem quanto comandar a ordem-unida. Bromélias e cactus, comuns por lá, fuzilaram o coração do oficial, um apaixonado pelas plantas. Muitas vezes, o próprio Cardoso atende as crianças.
Apenas 300 privilegiados militares e civis têm passe livre à Restinga da Marambaia. Alguns, ainda mais abonados, moram lá: são 48 famílias no total.
— É realmente um privilégio. Olhamos para a frente e temos o mar com as águas mais limpas que já vi. Com todos aqueles bichinhos que não se encontram em outras áreas, como os tatuís. Isso sem falar no ar puro, na paz, no convívio com a natureza bruta, na área verde. Na verdade é melhor do que se possa imaginar. Nem tenho palavras para descrever a sensação de morar aqui – enumera o segundo-tenente Francisco, que vive numa das casas da vila, logo no início do CPrM.
As paisagens encantadoras da Marambaia servem de cenários para filmes, novelas e comerciais. Kubanacan tem cenas gravadas ali, e a Globo prepara o terreno para iniciar as filmagens de Da cor do pecado – próxima novela das sete. O ex-presidente Fernado Henrique Cardoso gostava de passar festas de fim de ano na região. Para alívio dos militares lotados no CPrM, ele escolhia as instalações da Marinha, que ocupa a Ilha da Marambaia, na verdade a extensão final da restinga, mais ao Sul, intacta reserva de mata atlântica, de características físicas bem diferentes da restinga:
— Presidente dentro de um quartel dá um trabalho danado. Graças a Deus, Fernando Henrique Cardoso ficava lá – graceja o coronel Cardoso, simpático.
Apesar da imensa predominância masculina, há espaço também para as mulheres na Marambaia. As tenentes Eiras, Patrícia e Daniela dividem o tempo entre atendimentos médico-dentários, as armas e o computador. A loura Daniela Fagundes da Silveira, de 28 anos, nem precisaria ser dentista para deixar o pelotão de boca aberta. Vaidosa e bela, a oficial não dispensa o batom e o coturno bem engraxado. Musa do Exército?
— Não tem essa história. Claro que acontecem brincadeiras, mas tudo dentro do maior respeito – desconversa a moça, ruborescida.
Tenente Daniela caminhando na praia com um amigo. |
E o paraíso não chega a ser inacessível. Ainda que o Exército restrinja o acesso à praia nos fins de semana a 250 pessoas – que devem estar cadastradas com carteirinha e tudo – tem gente, como o instrutor de mergulho Luiz Acioly, que promove passeios turísticos de barco pelo manguezal repleto de biguás, gaivotas e garças. E até mesmo exibicionistas tartarugas-marinhas que nadam abaixo da portaria do complexo militar nas águas verdes e límpidas do canal. Presença que já não causa alteração:
— Elas estão aqui todos os dias, moram aqui. No início achava o máximo a presença das tartarugas. Agora já até enjoei – esnoba o sargento Gilberto Soares.
E quais seriam as razões para o lugar seguir fechado ao grande público?
— Só eu poderia lhe dar dez – diz Luis Fernando Menezes, para em seguida listar uma dezena de espécies seriamente ameaçadas de extinção que ali encontram seguro abrigo. De minúsculos lagartos, passando pela borboleta-da-praia, até chegar à rã Leptodactylus marambaie, dona deste nome por não ocorrer em mais nenhum outro lugar do mundo.
Sem falar nas espécies vegetais como o oiti-do-mato, não incluídas na relação de razões do biólogo do Departamento de Botânica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
— O uso da praia na Marambaia deve ser controlado em função da manutenção da sobrevivência de diversas espécies de animais e plantas que só habitam este tipo de ambiente – completa Luis Fernando.
Quem cresce o olho pensando em transformar o refúgio em complexo de lazer encontra sentinelas em alerta.
— Ainda há gente que quer fazer daqui uma espécie de Cancun brasileira. Mas, se depender de nós, não vai acontecer mesmo – metralha o coronel Cardoso.
Vizinhos têm problema ambiental
Duas pontes, lado a lado, separam a Restinga de Marambaia de Barra de Guaratiba. E estabelecem também a divisão de dois ambientes completamente distintos. De um lado, natureza virgem. Do outro, encostas ocupadas, problemas de saneamento e vias de sustento que minguam a cada ano.
Mas uma queixa é comum tanto à turma das armas quanto à das redes: a pesca de arrasto, que é proibida e gera enorme desperdício de peixes:
— Quando passam aqui, a praia fica cheia de peixes mortos que não são aproveitados. O pior é que não podemos fazer nada, é função do Ibama – reclama o coronel Cardoso, apontando uma dupla de barcos que pratica a pesca predatória em frente à Praia da Marambaia.
O mais velho pescador da região, Célio Soares, de 82 anos, recebe o mais novo, Ronan Soares, de 14, que acabara de chegar da pescaria:
— Esse aí está se formando pescador, mas se não tomarem uma providência logo ele não vai ter como trabalhar – lamenta Célio ao ver o garoto chegar com a raquítica produção do dia: alguns siris e poucos pampos e bagres.
Outrora abundante, a pesca de camarões, caranguejos, trilhas, corvinas, sardinhas e ostras em Guaratiba fica comprometida com o tráfego de barcos pesqueiros que infringem as leis.
— Deveria haver apenas pesca artesanal aqui. O pessoal de fora está acabando com o nosso peixe – manifesta-se Manoel Fogaça, dono do Bar do Xodó, ponto de encontro dos pescadores de Guaratiba, entre as praias Grande e do Canto, com nobre vista sobre o oceano.
Ao contrário das queixas em uníssono contra a pesca de arrasto, a restrição ao acesso à Marambaia divide:
— Não sei por que não abrem a praia ao público – reclama Jorge Monteiro, que tem um restaurante no caminho para a restinga. A mulher dele rebate:
— Não tem que abrir nada. Para quê? Para destruírem tudo? Deixe como está – brada Carmelita de Souza, que prepara as peixadas do restaurante Tia Carmelita no fogão a lenha.
Deliciosas, diga-se. E baratas. Uma porção de badejo para três pessoas sai por R$ 18. Pode ser o complemento perfeito para um passeio em Barra de Guaratiba, que além da praia abre a possibilidade de um tour pelo mangue. Luiz Acioly, dono de um barco de sete pés, cobra R$ 20 por pessoa para percorrer, por uma hora e meia, igarapés e águas do manguezal:
— Dá para observar uma série de aves, como o mão-pelada, uma espécie de arara azul típica de mangues, vários tipos de caranguejo e tartarugas que vão ali desovar – comenta Acioly, também instrutor de mergulho.
Bom programa de fim de semana. Turismo para carioca, em pleno Rio.
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