"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto. In Memoriam. |
Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso
à cidadania no Brasil
Alessandra Rocha Ribeiro Souto
Decerto, a burocratização promovida pelo Estado moderno – consoante à teoria de Max Weber – pode ser considerada o meio de organização mais suscetível a promover a isonomia e a cidadania, visto que, por meio de registro civil, todos os cidadãos são formalmente contabilizados e passam a usufruir igualmente do acesso aos serviços prestados pelo governo do Brasil. No entanto, na medida em que nem todos os nascidos possuem acesso igualitário à aquisição da certidão de nascimento, tal lógica de funcionamento estatal é comprometida. Dessa forma, é preciso não apenas permitir que todas as pessoas consigam o registro civil, mas também mitigar a invisibilidades daquelas que não o possuem.
Sob essa perspectiva, é notório que os indivíduos que vivem em áreas vulneráveis ou remotas apresentam maior dificuldade de obtenção do registro civil. Nesse sentido, a obra literária “Vidas secas”, do autor Graciliano Ramos, evidencia tal cenário, haja vista que, no âmbito do livro, as crianças de uma família retirante nordestina não apresentam nomes próprios, fator que leva à inferência de que elas não foram registradas oficialmente, percepção amplificada pelo fato de o único personagem nomeado ser uma cachorra, Baleia – e animais não necessitam de registro formal para receberem nomes, diferentemente dos homens. Desse modo, a ineficiência estatal em prover direitos básicos à população de áreas precárias – como moradia, escolaridade, alimentação e saúde – leva brasileiros à marginalização, de forma que não dispõem da possibilidade de registrar os seus filhos, o que culmina em um paradoxal ciclo vicioso, já que a falta de meios para exercício pleno da cidadania pelos pais origina a lacuna de cidadania da sua prole, não registrada.
Outrossim, é possível afirmar que a marginalização dos brasileiros sem registro civil leva à invisibilidade deles perante o Estado e a sociedade, uma vez que não só deixam de ter a garantia dos serviços sociais e dos demais documentos formais, mas também passam a ser ignorados pela parcela populacional que dispõe desses recursos. Com efeito, além da perda máxima de cidadania, os que não são considerados cidadãos, pela falta de registro social, perdem, da mesma forma, a humanidade, porquanto não gozam do direito a ter direitos – considerado por Hannah Arendt o mais humano de todos os direitos – e porque não recebem a empatia dos considerados cidadãos. Assim, encontram-se desamparados e invisibilizados por aqueles que os cercam.
Dessarte, é nítido que a garantia de cidadania no Brasil depende do acesso ao registro civil e da erradicação da invisibilidade que acomete os que não dispõem do documento. Logo, é mister que o Ministério da Cidadania – órgão que preconiza o desenvolvimento social do país – realize o aumento do número de centros responsáveis pelo registro da certidão de nascimento em áreas remotas e vulneráveis, por meio de um programa governamental de medidas, com o fito de ampliar a quantidade de registros civis, juntamente com a viabilização de condições dignas de vida. Ademais, é necessário que o Congresso Nacional promova um plano específico de auxílio às pessoas sem certidão de nascimento, mediante um projeto de lei, de modo que elas recebam uma identificação prévia para não permanecerem invisíveis e desamparadas até obterem o registro civil. Portanto, será possível a composição de um Estado weberiano pleno e organizado, em que todos terão o direito a terem direitos, como definiu Hannah Arendt, e cidadania garantida, com a concretização de uma realidade bem distante daquela retratada no livro “Vidas secas”.
Esclarecimento
Nas provas do ENEM e do PAS/UnB, a Alessandra conquistou o ingresso, em Medicina, na ESCS e na UnB, respectivamente. Num primeiro momento, ela se matriculou na ESCS; e depois, com a aprovação mediante o PAS, ela optou por realizar o curso na UnB.
Enfatize-se que seu elevado desempenho no ENEM, permitir-lhe-ia optar por fazer Medicina em alguma dentre 30 universidades públicas brasileiras.
Siglas
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
UnB – Universidade de Brasília.
PAS/UnB – Programa de Avaliação Seriada da UnB.
ESCS – Escola Superior de Ciências de Saúde — faculdade de Medicina distrital (isto é, estadual), de Brasília.
Mensagem para Alessandra
2022 05 05
Minha filha,
Parabéns pelo brilhante texto.
Afora os méritos pela magnifica exposição de ideias na prova do ENEM, um afeito colateral de sua redação é a satisfação de qualquer pessoa ao deliciar-se com a leitura — que assim como a música — constitui uma das atividades muito agradáveis que o ente humano dispõe.
Cumprimentos efusivos, pois!
Bjs
Owl Dad
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